Sonhos salvam



Por Adriana Bernardes


Querido (não) Diário, cá estou eu novamente. 

Tenho me sentido só. Um buraco sem fundo se alojou no meu estômago e me lembra diariamente que os abraços e os beijos de quem amo estão cada vez mais distantes. A pandemia do novo coronavírus tende a se prolongar pela omissão e desprezo dos governantes pela vida humana. Enquanto isso, seguimos no isolamento social. 

Há cerca de 15 dias, o funcionário dos Correios entregou uma caixa enorme aqui em casa, enviada pela minha mãe. Dentro dela, um lindo vestido rosa inspirado no mitológico unicórnio. Era o desejo da minha pequena para o aniversário de 8 anos, celebrado em 27 de junho. Havia ainda outras peças de roupa e máscaras de proteção costuradas pela minha mãe. Além da papelaria de unicórnio feita pela minha irmã para decorar o apartamento na hora do parabéns pra você a quatro: a fofolete, o piquinicão, meu marido e eu. 

Cheiro de mãe

Quando abri a caixa e puxei um macacão amarelo, o cheiro da minha mãe estava impregnado nele. E em todas as outras peças. Meus olhos encheram-se de lágrimas e um nó na garganta me silenciou. Quando minha pequena pegou uma blusa que a avó fez pra ela, automaticamente abraçou a peça, cheirou e disse: "Mamãe, tem o cheirinho da vovó!". A abracei enquanto as lágrimas caiam sem parar. Saí do quarto para me recompor antes que ela percebesse a minha dor. 

A comemoração do aniversário da minha fofolete foi linda! Ao longo do dia, ela recebeu vídeos dos tios e primos. Um deles gravou truques de mágica que a deixaram intrigadas. Conseguimos realizar todos os desejos listados por ela num diário: café da manhã na cama; espaguete a bolonhesa no almoço, decoração surpresa, bolo de unicórnio e festa do pijama na sala, debaixo de uma cabana que improvisamos com lençóis e fios amarrados na porta, na viga e nos móveis. Ela estava radiante. 

Falta do vazio

Um dos momentos marcantes, foi quando coloquei uma venda em seus olhos e vesti nela o vestido que tanto sonhou. Diante do espelho, ela gritou, se jogou no chão, gargalhou e rodopiou o resto do dia. Uma cena linda de viver! Foi tudo perfeito. Mas no fim do dia, faltou a exaustão de ter a casa cheia, de quebrar a cabeça para achar um cantinho para acomodar os colchões, a confusão de um monte de adulto e criança falando ao mesmo tempo, a disputa pelo único banheiro da casa, a falta de pratos e talheres para todos. Fui dormir destroçada pela falta que isso me fez. No domingo, comecinho da tarde, senti falta de sentir o coração apertado pela despedida. E também do vazio que a casa fica toda vez que eles se vão. 

Sonhos salvam

No último mês, tenho visitado meus pais inúmeras vezes. Sim, inúmeras vezes, em sonhos. Já fizemos alguns churrascos. Já caminhamos pela praia de areia muito branca e fina e um deslumbrante mar azul claro. Já abracei meu pai e senti suas mãos calejadas baterem forte nas minhas costas. Já estive com meus irmãos, meus sobrinhos (todos eles), minhas cunhadas e cunhados, com minha sogra. Todos os encontros, em sonhos. Acordo com uma sensação boa. Um lindo artifício do meu subconsciente para me ajudar a aguentar a distância e a falta de previsão sobre quando poderemos estar juntos de novo e em segurança. Mas ficaremos bem. 


Comentários

  1. Sonhar pelo menos trás esperança de dias melhores para todos nós.

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  2. uma das maiores falta é a distancia da família.
    sonhar é tremendo, parece até real,
    com fé em Deus o sonho se realizará

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    1. Tomara que todos os nossos reencontros físicos sejam breves. E que fiquemos bem!

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  3. Mesmo sem o presencial foi muito especial a festa, muito amor, surpresas e presenças nos presentes, nos cheiros e na beleza do encontro. Diferente mas uma festa. PARABENS A LINDINHA !!

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    1. Sim, Nazzareno, foi muito especial. E me sinto abençoada por isso. Obrigada pelo carinho.

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  4. E haverá coisa melhor do que cheirinho e afagos maternos?

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  5. Se Deus quiser, isso vai passar logo e aí vamos matar a saudade e preencher esse vazio. Belíssimo texto, parabéns, bjs

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    1. Oi Joaninha! Sim, logo isso passa e estaremos nos abraçando de novo. Todos nós! Saudade do convívio presencial com tu.

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    1. Como diz meu piquinicão, a saudade das pessoas e atividades de antes é maior que o infinito!

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  7. Que coisa bonita! Uma caixa, cheia de afeto, cheiro e magia, chegou a ti trazida pelos Correios. Era uma vida em pandemia. Um mundo em pandemia. Essa caixa de afetos foi a vacina da esperança. Eu senti o cheiro dela.

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    1. Sim, Marcelo! Essa caixa de afeto trouxe aconchego e dor. Mais aconchego que dor. Ampliou a vontade de estar junto. E também a determinação de seguir no isolamento com responsabilidade até que possamos nos abraçar em segurança.

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