Lá se vão 100 dias...

(Não) Diário de uma quarentena


Por Adriana Bernardes

Cem dias em isolamento social. Quase um terço de 2020 em casa. Uma coleção de momentos agridoces. Uns mais acres que doces. Outros, completamente nonsense, blasés. Dias de fúria, de compaixão, de plenitude, de serenidade e de inquietude. 

No Planalto Central, o ar está rarefeito. As consequências são devastadoras. A vida floresce aqui, se esvai ali, subsiste acolá, perambula esfarrapada nos arredores e nos becos da cidade da esperança. Os abraços se foram. Assim como as inconfidências ao pé do ouvido. O burburinho do happy hour se foi. As gargalhadas, aquelas de fazer a barriga doer, molhar os olhos até se fazer choro e o choro fazer-se riso de novo, estão mais raras.



Os ipês-roxos colorem os dias lá fora. Da janela, fecho os olhos e os vejo ao longo do Eixo Monumental, contornando as tesourinhas, nas imediações da Catedral e salpicados pelas asas Norte e Sul. Certeza que a barriguda do Tribunal de Justiça do Distrito Federal já perdeu as folhas. E seguirá assim até o fim de agosto, quando minúsculos pontinhos verdes-claro anunciarão a chuva que não tarda a chegar. Poucos perceberão os sinais.

Sigo para a plataforma, de frente para o Congresso, peito aberto, cabelos ao vento...Meus olhos percorrem a paisagem já árida. O verde despediu-se dos gramados para a chegada do marrom alaranjado. Os trieiros abertos pelo ir e vir de trabalhadores e trabalhadoras do meu quadradinho, rasgam a relva tal qual os deixados pelas formigas operárias. 

Se for cedinho, periga ter cerração. O  vento gelado deixará o meu nariz vermelho. Se no cair da tarde, talvez o céu esteja pintado de laranja, com um tantinho de lilás e um bocado de vermelho. Ficarei imóvel. Não direi uma palavra até o Sol se pôr. Desse êxtase só saio quando o vento voltar a sacudir as folhas e os pássaros retomarem a cantoria.  


Presente e futuro se misturam em meio a devaneios. Agosto logo chegará e, com ele, 130 dias de isolamento social. Os ipês-brancos e os amarelos ganharão as ruas. E, novamente, abrirei a minha janela, fecharei meus olhos e os verei em pensamentos pelos caminhos que costumava percorrer. Certamente soltarei um longo suspiro. Meu coração se encherá de esperança. E renovarei o desejo de ver de perto a floração dos ipês-rosa, lá pro mês de outubro, quando a chuva cairá abundante, lavando tudo e renovando a vida. Renovando a vida!

Brasília, 26 de junho de 2020.

Comentários

  1. Diante dos percalços da vida Deus na sua infinita bondade nos coloca pessoas como a Adriana à nos acalentar, para que possamos revigorar as forças,seguir adiante,aprender e posteriormente retribuir as bençãos recebidas e assim o mundo caminha para dias melhores. Com gratidão e fé.Maria Eutenir Braga

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas