Conversa com os anjos


Por Adriana Bernardes

Bertha acordou sem graça que nem chuchu feito no molho sem qualquer tempero. O céu tomado de azul e a luz do sol não afastaram aquele sentimento sem cheiro, sem cor, sem sabor...

Na noite anterior, Anita, irmã do meio de Bertha, fez um convite inusitado. Uma corrente de oração para um tio querido.

    – Estou dentro, respondeu de pronto. 
    – Será as três da manhã, informou Anita. 
    –Mas tem que ser as três?  
    –Sim. Dizem que os anjos ouvem mais as três da manhã, respondeu Anita.

Bertha e Anita riram. O riso fechou o pacto. Quando o telefone marcou três, fizeram suas preces. Berta soube depois que Anita estendera o convite para o irmão caçula, Joaquim, e também para uns primos e primas. 

E assim, as três da manhã deste sábado, cada qual na sua casa, cada qual com o seu credo, a quilômetros de distância uns dos outros, eles se uniram numa só intenção. Pediram aos anjos que aquele tio querido estivesse bem assistido. Assim como os médicos que fariam a cirurgia. 

No fim deu tudo certo. O tio figura, fã do Robertão, enfrentou com coragem a operação. E, muito em breve, Berta, Anita, Joaquim, os pais, os primos, o tio, os outros tios e tias e a criançada toda estarão juntos celebrando a vida. E pensando na vida, Bertha pegou emprestado as palavras de Guimarães Rosa, em o Grande Sertão Veredas, e escreveu em seu diário. Pra jamais se esquecer que viver requer coragem!  


“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais, no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”


(Não) Diário: três meses de isolamento social

Brasília, 6 de junho de 2020.

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