Doce infância


Menina criada na roça desconhece doce enlatado, rotulado, com data de fabricação e de validade. Ela leva na cintura o jacá de palha trançada, atravessa o córgo (1), passa por cima da pinguela (2), sobe um pouco o morro e, quando a vista alcança a tapera (3), já tá chegando. 

Em redor, Cerrado ralo, cupinzeiros avermelhados aqui e acolá, céu carregado de nuvens. Se estão atrás da serra (e elas estão), é chuva na certa. Jacá no chão, hora da colheita das goiabas. Tem da branca e da vermelha. Mas pra doce, só serve a vermelha. Nunca soube quem era quem, assim, só de bater o olho. Dúvida que jamais gerou queixas. Nunca foi sacrifício descobrir, no dente, qual iria para o jacá. 



Colheita encerrada, hora de voltar pra casa. Desce morro, olhos pro céu, aperta o passo. Lá pras banda da serra, o cinza azulado (mais azulado que cinza), desce do céu à Terra parecendo cortina de voal. O vento muda a intensidade, e o calor dá trégua. A pinguela nem chegou e os pingos de chuva chegam grossos, um aqui, outro ali pra logo cair generoso e gelado.  


O resto do caminho é debaixo de um toró (4) que Deus dá. Banho e roupa quente? Que nada! É hora de acender o fogão à lenha, cortar as frutas ao meio, tirar o miolo, jogar as metades no tacho de cobre, cobrir de açúcar e levar pro fogo.





Mas se do doce é de manga comum verde, a história é outra. Basta o jacá e uns 100 passos da varanda ao manguezal (5). Já em casa, descasca as frutas, joga-as inteiras do tacho de cobre com água e deixa cozinhar até até elas começarem a desmanchar. Passa uma a uma, ainda quente, na peneira bem fininha. O creme esverdeado, volta para o tacho de cobre com um bocado de açúcar.

Horas depois de muita mexida com colher de pau, o olho diz é quem diz quando está no ponto. O doce vai pras travessas ou potes de vidro. Mas deixa-se um cadim (6) por todo o tacho. Afinal, que graça tem qualquer doce, se não se lambe a rapinha do tacho? A lembrança do gosto azedinho atravessa quase quatro décadas pra alcançar a menina da roça, agora mulher feita, bicho da cidade. A boca se enche d'água e, fechando os olhos, quase dá para sentir o gostinho!


Nem goiaba nem manga

Mas hoje, mulher da roça viaja no tempo por outro doce, o de abóbora com coco. Ela já não tem quintal, nem horta. Mas tem a feira e, na feira, tem abóbora. O céu tem nuvens de chuva, como o de outrora. E ela volta pra casa debaixo de um toró, como o de outrora. Mas ao contrário dos tempos de menina, vê a chuva pelo vidro do carro. Quase não sente o cheiro de terra molhada. E ela não fica encharcada no caminho para casa.  


Da porta pra dentro, limpa tudo com álcool 70%, lava com água e sabão o que comprou, corre pro banheiro. A chuveirada é da cabeça aos pés, rotina neste 2020 marcado pela pandemia mundial de coronavírus.


Mulher da roça não tem tacho de cobre, nem fogão à lenha. Vai tudo pra dentro da wok antiaderente e ela, pro fogão à gás. Mas, como se faz doce de abóbora mesmo? Mulher da roça abre o Google: “como fazer doce de abóbora com coco?” Vai no primeiro link: 


Doce de abóbora com coco fácil*




Ingredientes:

  • 1 kg de abóbora
  • 1 kg de açúcar
  • 1 pau de canela
  • 100 g de coco ralado
  • 3 cravos-da-índia

Modo de preparo:

  • Descasque a abóbora, corte em pedaços e cozinhe (pedaços quadrados de mais ou menos 4 ou 5 cm).
  • Depois de cozida, escorra a água, amasse bem com o garfo e leve ao fogo em uma panela com o açúcar, cravo e a canela.
  • Deixe no fogo e mexa até desprender do fundo da panela.
  • Retire do fogo, misture o coco e leve novamente ao fogo.
  • Continue a mexer até desprender novamente do fundo da panela.

"Moleza!" 

Exceto pelo fato de que a mulher da roça não faz ideia de quantos quilos de abóbora comprou. Primeiro, 500 gramas de açúcar. 

“Sem graça!”. Dobra a receita. “Hummm...podia ser um pouquinho menos”. Agora já era. 


Três cravos e um pau de canela. 

“Será? Que mixaria!”. Pega um punhado de de cravo e outro de canela e acrescenta à mistura. . 

“Agora, sim!” O perfume das especiarias invade a casa. 


Ops!

Um olho pra panela, outro no coco ralado. 

“Esse coco não vai dar”. Não sabe quanto de coco comprou. 

“Coloca um punhado no saquinho que te digo quando parar”, foi o que o disse ao moço da feira. Quem socorre é o marido. Do mercado trouxe coco fresquinho, ainda na casca, e sugeriu assá-los um pouco. Sugestão aceita! 


Mulher da roça desliga o fogo. Pega o computador e começa a escrever. As lembranças dos doces da infância a roubaram de si mesma. E ela reviu a casa onde cresceu com cores tão vivas como nunca imaginou ser possível.


O rosa da parede, o picumã (7) no teto da cozinha, o fogão à lenha vermelho vivo onde assava-se as espigas de milho colhidas no quintal….Sentiu de novo o cheiro de terra molhada, a delícia de ficar encharcada por uma chuva de verão durante a colheita de goiaba, o cheiro e o gosto dos doces dos tempos de menina. 


Agora, é voltar pra cozinha, picar o coco, e finalizar o primeiro doce de abóbora da mulher da roça. Se não tiver o gosto da infância, terá valido a pena pelas cores, os cheiros e os sabores revividos durante uma tarde inteira de férias, em quarentena, na pandemia.  


Pra quem não se criou no interior de Minas ou de Goiás e desconhece as expressões, uma ajudinha.


1- Córgo - córrego.

2- Tapera - ruínas de uma casa de fazenda.

3 - Pinguela - tronco de árvore muito rústico sobre o qual se atravessa um riacho ou rêgo d’água.

4 - Toró - chuva forte.

5 - Manguezal - na verdade, mangueiral. Local com muitos pés de manga.

6 - Cadim - um pouquinho de nada. 

7 - Picumã - fuligem 


* A receita é do site Tudo Gostoso. Tem várias delícias neste site e, geralmente, funcionam até comigo.


P.S.: A experiência de fazer o doce de abóbora com coco se desdobrou em um "pote de afeto". Mas essa história sobre afeto em potes e caixas, conto outro dia. 

Crédito das imagens: Doce de goiaba e de manga (Pinterest). Doce de abóbora com coco (Adriana Bernardes).


(Não) Diário de uma quarentena.


Por Adriana Bernardes.


#afeto #memórias # infância #docesdainfancia #pandemia #coronavirusBrasil #FiqueEmCasa #usemascara #docedeabobora #docedegoiabaemcalda #roça #caipira

Comentários

  1. Que texto mais lindo,eu bem queria que ele acabasse te tanta emoção que eu senti parecia que era em neste texto maravilhoso prima ! Quanta emoção.

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    1. Ai, que delícia!!!! Obrigada! Fico feliz que tenha gostado. Beijo

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  2. Queria que ele não acabasse de tanta emoção que senti em cada linha .

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  3. Que delícia de texto! Parabéns, Adriana! Já vou fazer doce de goiaba, pq é o que mais gosto.

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  4. É maravilhoso, né??? Não sou chegada a qualquer doce. Gosto muito dos que são feitos de goiaba (em metades), o de figo, mamão verde com coco, abóbora com coco e o de manga verde! Tô achando que vou atrás de manga.....rssrs

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  5. Muito bom Dri, vou aguardar os desdobramentos 😋

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  6. Vou preparar, Dri! Estará publicado até domingo.

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  7. Adorei as histórias e conhecendo vc, consegui viajar pelos caminhos que vc fez na história e vi a presença da sua em tudo isso. Bjs

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    1. Que bom que gostou! Ela estava lá o tempo todo, sempre! Bjs. Saudade docê!

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