Acordei ao avesso






Hoje, acordei ao avesso. Entrou mais ar que de costume nos meus pulmões. Desacostumada, quase sufoco sentindo a respiração suprir toda a necessidade do meu corpo. 


Por Adriana Bernardes


Duas canecas de café saciaram a minha fome de cafeína. Meu corpo encontrou mais espaço dentro da minha própria casa. Encontrei mais espaço pra mim, dentro do meu próprio corpo. Hoje acordei ao avesso.


Peguei o caminho mais longo para o trabalho. Aquele com o maior fluxo de veículos, com semáforo e cruzamentos. Hoje acordei ao avesso. 


Uma calmaria quase esquecida, se instalou em mim, ao redor de mim. De repente, havia espaço de sobra para os músculos do coração fazê-lo retumbar como a bateria da minha Mocidade Independente de Padre Miguel! 


Hoje acordei ao avesso. Vontade de caminhar sem rumo e sem pressa. Lábios desalinhados na cara - nem riso, nem choro, nem gargalhada; algo entre um e outro, além de um e outro. Muito além… 


Pela primeira vez em muito tempo, não quis ouvir O Político, do Chico, janelas do carro fechadas, som no talo, cantando/gritando junto, tentando acertar as letras e buscando um tico de melodia no meu cantar. Acordei ao avesso, hoje. 




Hoje, choveu lá fora e fui chuva também. A chuva que vi cair do céu molhando o flamboyant vermelho, de certo brotou meu âmago expulsando aflições. 


Chovi tristezas, angústias, incertezas, lamentos, raiva, indignação. Chovi tudo de ruim que pesava sobre os meus ombros e adoecia minha mente e corpo. 


De repente, virei pluma. De repente, Quintana bateu à porta das minhas lembranças


"Tenta esquecer-me... Ser lembrado é como

evocar-se um fantasma... Deixa-me ser

o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo...


Em vão, em minhas margens cantarão as horas,

me recamarei de estrelas como um manto real,

me bordarei de nuvens e de asas,

às vezes virão em mim as crianças banhar-se...


Um espelho não guarda as coisas refletidas!

E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar, as imagens perdendo no caminho...

Deixa-me fluir, passar, cantar...


toda a tristeza dos rios é não poderem parar!"


Hoje acordei do avesso. Acordando ao avesso, dei de cara comigo no espelho. E lembrei de mim como sempre fui. É como voltarei a ser.




*Esta crônica foi publicada na edição de 1º de novembro no Correio Braziliense. Os sentimentos e junção de palavras, nasceram um dia antes, em 31 de outubro de 2022.






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