Pandevida

 



De tanto caminhar livre,
recuso as amarras dos caixotes em que meus pés se metem agora. 
De tanto sentir o frio, o conforto e a poeira do chão, 
rachaduras se abriram na pele, tais quais aquelas lá do sertão:
Frestas de liberdade, de negação e de aceitação.

De tanta liberdade, 
uma penugem fina cobriu minhas coxas, axilas e sexo. 
Estive tão à vontade comigo mesma, assim, nua e crua, sem retoques, 
que, por quase dois anos, vivi no conforto do pijama.

De tanta liberdade — de dentro dessa prisão que a pandemia me jogou—, aboli o batom, o desodorante, cortei eu mesma meus cabelos, fiz minhas próprias unhas, deixei-as sem cortar e abusei das cores: 
Experimentei o azul, o verde, o roxo e o preto. 

Pintei —ou tentei pintar— meus cabelos de azul. 
Numa provocação barata, os fios seguiram negros como os olhos da grauna. Minhas mãos, não. As fronhas do travesseiro, não. As toalhas de banho, não. As paredes do banheiro? Não também! A cada banho, o azulejo branco tingiu-se de.
Resquícios do blue, só nos fios brancos cada vez mais abundantes emoldurando meu rosto. 

De tanta liberdade, me perdi em mim mesma. 
Sou grão de areia dos desertos, mares, cerrado, neve, verões, outonos, primaveras e invernos que habitam em mim. 

Vagueio na imensidão de mim mesma
Experimento a concretude da vida aqui dentro e aqui fora; 
Toco o abstrato aqui e acolá. 
Tateio o ontem, o hoje, e me vejo agarrando (tentando agarrar) o futuro etéreo.


Encho a casa de plantas, a mesa do escritório de flores e de alguns palavrões. 
                  Suspiro com o perfume do meu homem.
Me diluo no amor dos meus filhos e sigo:
Feliz e triste, quente e fria, na esperança e na falta dela, no grito engolido, no choro preso na garganta, no arrepio de um desejo, no calor de um beijo. 
Sigo e existo na pandemia global do século. 


Por Adriana Bernardes (texto e foto)
Brasília, 5 de dezembro de 2021.
(Não) Diário de uma pandemia.

Comentários

  1. Tipo isso!
    Belo verbalizar!
    Parabéns!!!

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  2. Parabéns Adriana!!! Seus poemas estão à cada dia mais interessantes👏👏

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  3. Grata pelo compartilhar da riqueza de sua poesia, da força de sua escrita!

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  4. E ainda arriscando cunhar neologismos. Parabéns, Dri.

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  5. Belo poema, Adriana. Você manda bem! (E lembra Cecília Meireles, que amava plantas, canteiros, etc) e talvez escrevesse algo bem parecido)!

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  6. Belo texto. Muito sensível, Adriana. Parabéns.

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