Choro sem título

Preciso falar sobre a morte. E por isso, demorei tanto a aparecer por aqui. Sufoquei enquanto pude o meu reboar. Mas me omitir a falar sobre o fim da jornada terrena, seria uma traição irreparável aos sentimentos que me movem neste espaço: falar sobre o que a alma grita, sobre qualquer coisa, alegre ou triste. Seria uma autocensura e não me dou ao direito de me permitir uma coisa dessa. Nem comigo, nem com ninguém. 


Por Adriana Bernardes


A morte tem gosto amargo. Pelo menos para quem fica. Quando ela chega, o tempo para. A boca seca. A gente perde o rumo. Entre pensar no nada e em coisa alguma, mil coisas passam diante dos olhos, como imagens em sépia, numa tela de cinema. 


Em plena terça-feira, faltando 5 para às 10 da noite, após uma extenuante jornada de trabalho, abri uma garrafa de vinho. Não planejei estar aqui hoje. Nem falar sobre a morte hoje. A última coisa que eu queria, era abrir o computador e, de novo, me por diante de uma tela. Mas o reboar reboou de forma tão contundente, que não pude mais adiar.


Preciso confessar que invejo os espíritas e todas as pessoas neste mundo que, diante da perda de alguém querido, conseguem seguir  serenos porque sabem que a vida continua. Eu acredito na continuação da vida (apesar de não aceitar muito bem essa história da morte dos que amo).




Aliás, tenho pra mim que a Terra é um purgatório onde vivemos tudo de bom e de ruim, ao mesmo tempo. Onde somos condenados a viver para o futuro e sentir saudade do passado, nunca estando presentes no momento presente. Condenados a nos arrependermos do que não fizemos e do que fizemos. Condenados a viver sob eterna insatisfação.


Por ossos do ofício, diariamente entro em contato com o pior e o melhor do ser humano. Nos últimos anos, está difícil colocar na balança o que a realidade esfrega mais na minha cara e dizer que há motivos para ter esperança.


Poesia


Para sobreviver com o mínimo de saúde mental e física, optei pela síndrome de Poliana, pessoa que tende a ver tudo com os olhos da positividade. Nesta jornada, conto com amigas e amigos sábios. Uma delas, Ceiça, me disse uma vez quando desabafei minhas dores: “Adriana, você precisa parar de olhar para o caos e mirar as estrelas”, ou algo como isso. Virou meu norte. 


Também foi Ceiça, mulherão da porra, nascida no Norte, fêmea de rio caldaloso em experiência de vida e no jornalismo, quem me apresentou Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, poeta que leio e amo desde a meninice. 


O poema que ela mandou certo dia, vou pedir a alguém para desenhar em letras cursivas (preto sobre o branco numa tela); vou emoldurar com madeira branca, vidro anti-reflexo, e pendurar na parede da sala: Para além da curva da estrada, é o nome do poema. Como eu pude, somente na pandemia, aos 45 anos, conhecer Para além da curva da estrada, sendo eu, amante de Pessoa desde que me entendo por gente? Mistérios da pandemia! 


Nesses dias tristes, de perdas tão próximas ou próximas de alguém bem próximo, é nisso que tenho me agarrado: na poesia, na pintura, no cuidado com as plantas, na concretude de que minha família e eu temos o privilégio de estarmos com saúde e respeitando as normas de distanciamento físico; que eu sou privilegiada por estar há mais de um ano trabalhando em home office - o que me dá tranquilidade para encarar longas jornadas e desafios imensos na vida profissional e pessoal.


Em 2019, quando a pandemia fez morada no Brasil, o genocídio promovido no país esteve distante de mim, como de você e da maioria dos brasileiros. Mas 2021 chegou como um soco no estômago pra mim, pra você e para a maioria dos brasileiros.


Pesquisadores dizem que, dificilmente no país, haja uma pessoa que não perdeu alguém para a covid-19 ou que não conheça alguém que tenha perdido alguém. Assim mesmo, com muitos “alguém”, e repetições como uma fileira de dominó desmoronando. 


Por aqui, a morte tem chegado cada vez mais perto. Sinto seu gosto amargo (e olha que, como boa mineira, amo jiló e gueroba). Engulo seco; busco ar na janela de casa; e beleza nas plantas que passaram a fazer parte da minha vida nesta pandemia.


Choro compulsivamente abraçada no meu companheiro de vida e sigo. Sigo trabalhando. Sigo tentando fazer com meus filhos o que Roberto Benigni retratou em “La vita è bella”, de 1997, filme que jamais assistiria novamente neste momento. 


Sem reação

Como disse antes, pela minha sanidade mental, tenho vivido como Poliana (brega, né? Clichê? Muito! Mas Poliana me salva neste momento de tanta barbárie, quando os Três Poderes colocam em prática a Doutrina do choque). Em meio às trevas, sigo buscando ser luz no meu microuniverso. Acreditando que, se cada um de nós puder ser luz neste momento de trevas, teremos cumprido a nossa missão na Terra.


Paz e serenidade aos que partem! Colo, saúde e sabedoria aos que ficam! Que ninguém solte a mão de ninguém de ninguém! 


Rogério, dona Helena, sigam em paz. Meu muito obrigada pelo que vivemos e pelas lembranças de momentos felizes da jornada que compartilhamos! De cá, a gente aguenta o tranco. Amigos em luto, força e coragem.


Sim, terminei este post aos prantos. Estou triste e não estou. Nunca abafei o choro. Chorar me faz forte. Experimente também. É libertador!


*Crédito da imagem: "Transição, por Adriana Bernardes. Óleo sobre tela. Trabalho incabadado até a presente data.


(Não) Diário de uma pandemia interminável!   

Comentários

  1. Belíssimo texto, Dri. Também invejo a essas pessoas, digamos, mais "evoluídas", não alcancei este nível de despreendimento. Pensei, bom mesmo seria ser Álvaro de Campos para saber lidar com a aspereza desse mundo cão, agora mais cinza do que nunca, mas sigo, também, como Pollyana, presa fácil nesse mundo em que certa ingenuidade, compaixão, lágrimas latentes que na companhia de uma garrafa de vinho teimam em transbordar, acabam sendo démodé.

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    1. Que lindo, Dri! Agora é assim: ou a gente aprende, ou aprende. Não tem meio termo. Simbóra!

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  2. Adriana, que texto... obrigada por compartilhar sentimentos e reações tão verdadeiras e humanas... seguimos... um bjo grande

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    1. Oi Priscila, saudade! Estamos todos à flor da pele, né? Sigamos! Beijo.

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